*A palavra imitação neste texto tem a conotação de viver
como Jesus viveu, segui-lo como discípulo ao ponto de reproduzir seus valores e
ensinos.
A
virada do ano é repleta de promessas e alvos renovados. A mudança é salutar
para a psique humana, uma idéia de renovo, de novas possibilidade e mudanças.
Esse conceito é muito forte na fé cristã, porém a carga de valor e significado
não está na mudança meramente de hábitos, condição social ou perfil estético,
vai além, e está intimamente relacionada com mudança de mente, do grego
metanoia e normalmente entendido como arrependimento. A renovação também está
atrelada a esperança na fé cristã, a esperança da consumação da nossa salvação,
da renovação da criação, da instalação definitiva do reino de Deus, um Reino de
justiça e paz.
O que podemos sonhar com o novo ano? Qual deve ser o propósito,
o planejamento da Igreja?
Tende em
vós o mesmo sentimento que houve também em Cristo Jesus, pois ele, subsistindo
em forma de Deus, não julgou como usurpação o ser igual a Deus; antes, a si
mesmo se esvaziou, assumindo a forma de servo, tornando-se em semelhança de
homens; e, reconhecido em figura humana, a si mesmo se humilhou, tornando-se
obediente até à morte e morte de cruz. Pelo que também Deus o exaltou
sobremaneira e lhe deu o nome que está acima de todo nome, para que ao nome de
Jesus se dobre todo joelho, nos céus, na terra e debaixo da terra, e toda
língua confesse que Jesus Cristo é Senhor, para glória de Deus Pai.
Um pouco de história
o apóstolo Paulo está em prisão domiciliar em
Roma. O ano é de 61 AD. Paulo não é mais um novato na fé, já se passaram 25
anos desde a sua conversão, 3 viagens missionárias dentro do Império Romano
foram realizadas e muitas igrejas plantadas e cartas escritas. Paulo tornou-se
um apóstolo para os gentios, sem deixar de pregar e insistir com os Judeus na
compreensão destes de que Jesus é o Messias, o Cristo profetizado e esperado.
Agora Paulo está preso aguardando sua audiência com César, preso pela acusação
de judeus de que ele havia blasfemado contra a religião judaica e causado
tumulto nas cidades por onde passava anunciando outro Senhor, não César.
Paulo escreve aos crentes de Filipos, uma igreja plantada
por ele mesmo há aproximadamente uma década na sua segunda viagem missionária
(At 16:12-40). Lídia foi a primeira filipense convertida. Após a sua conversão,
Lídia abriu a sua casa para os missionários Paulo e Silas. Nesta cidade, ambos
missionários foram presos e chicoteados por expulsarem o demônio de uma escrava
que dava lucro aos seus donos com adivinhações. Na prisão, o carcereiro toma
conhecimento do evangelho e a seguir toda a sua família se torna cristã e é
batizada, tendo contribuído para isso um terremoto e a honestidade dos
missionários.
A carta
A
carta de Paulo é bastante pessoal e revela um pouco de como Paulo lidava com a
situação de estar preso por pregar o Evangelho de Jesus Cristo. E o texto base
é fundamental para entendermos o que Paulo quer dizer com a expressão: “que
haja em vós o mesmo sentimento que houve em Jesus”.
Para isso, vamos fazer um exercício de averiguação dos
textos bíblicos que envolvem essa cena e também um exercício imaginativo.
Convido os leitores para começarmos pela amizade
entre Paulo e Lucas. Lucas, o médico , historiador, autor de um dos Evangelhos
de Jesus e do livro de Atos dos apóstolos, cristão e missionário, foi citado
por Paulo em 3 cartas: Colossenses (4:14), Filemom (1:24) e II Tomóteo (4:11),
e em ambas Paulo estava preso quando as escreveu. Lucas é citado como alguém
querido, presente neste momento difícil e cooperador no ministério.
Colossenses (4:14)
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Uma pessoa querida para Paulo
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Filemom (1:24)
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Uma pessoa presente no momento difícil (prisão)
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II Tomóteo (4:11)
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Um cooperador no ministério
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A história da
igreja em Filipos foi relata por Lucas, no capítulo 16 do livro de Atos, e o
interessante é que a história da ida para Filipos e boa parte dos eventos foram
narrados em primeira pessoa, ou seja, Lucas, o autor estava presente. E o mais
interessante é que quando Paulo e Silas deixaram a cidade, dá a impressão de
que Lucas continuou acompanhando a Igreja que nascera, pois a narrativa
continuou em terceira pessoa.
Atos 16:10
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Assim que (Paulo) teve a visão, imediatamente, procuramos
partir para aquele destino (Macedônia), concluindo que Deus nos havia chamado
para lhes anunciar o evangelho.
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Atos 16:12
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Nesta cidade (Filipo), permanecemos alguns dias.
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Atos 16:40
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Dirigiram-se para a casa de Lídia e, vendo os irmãos,
os confortaram. Então, partiram.
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Por
que eu estou falando de Lucas?
Porque Lucas narrou a vida,
obra, crucificação, ressurreição e ascensão de Jesus, ou seja, todo o
evangelho. Lucas apresentou Jesus como Salvador e Senhor por meio do evangelho,
não deixando dúvidas de que Jesus era o Messias prometido, e que não há
salvação por meio de outro senão por Jesus. O evangelista também escreveu como
os discípulos se comportaram diante a ascensão de Jesus e a missão recebida de
fazer discípulos de todas as nações, surgindo assim a Igreja, o corpo de
Cristo.
O intrigante é que na crucificação de Jesus, duas das
três falas de Cristo durante o sofrimento na cruz foi repetida por Estevão, o
primeiro mártir cristão. Vejamos:
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Jesus
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Estevão
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Tipo de morte
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Crucificação
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Apedrejamento
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1ª Fala
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Pai, perdoa-lhes, porque não sabem o que fazem. Lc
23:34
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Eis que vejo os céus abertos e o Filho do Homem, em pé
à destra de Deus. Atos 7:56
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2ª Fala
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Em verdade te digo que hoje estarás comigo no paraíso.
Lc 23:43
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Senhor Jesus, recebe o meu espírito! At 7:59
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3ª Fala
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Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito! E, dito
isto, expirou. Lc 23:45
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Senhor, não lhes imputes este pecado! Com estas
palavras, adormeceu. At 7:59
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É impressionante como Estevão foi fiel testemunhando
Jesus Cristo até sob o risco de pena capital, não considerando a sua vida em
nada mais preciosa do que testemunhar a Jesus como Salvador e Senhor. Mais
impressionante é como Ele lembrou e imitou a Cristo na sua morte. Os dois
sofreram mortes violentas e injustas, pois foram acusados com testemunhas
falsas. Duas falas são idênticas, apenas com a ordem invertida. Estevão tem uma
visão de Jesus ao lado direito do trono de Deus, uma referência a glória e o poder
de Jesus ressuscitado, agora em pé para receber aquele que não se envergonhou
dEle. Com certeza essa segurança fortaleceu a fé de Estevão que então entrega
seu espírito a Jesus, o mediador perante o Pai, àquele que justifica, e em
seguida roga perdão aos seus agressores. O discípulo vai cada vez mais se
conformando a Jesus, até que consegue reproduzir a compaixão de Jesus na sua
morte.
Um detalhe importante é que um desses a quem Estevão roga
perdão é o próprio Paulo, cujo nome aparece à primeira vez registrada como
Saulo (variação hebraica – Saulo e grega – Paulo), aquele que consentiu e
aprovou a morte de Estevão, provavelmente um dos instigadores do julgamento de
Estevão e da perseguição aos cristãos (At 8:3 e 9:1-2). Lucas registra que
Paulo assolava a Igreja, ou seja, a perseguição não era apenas ideológica, mas
violenta, uma demonstração do seu ódio ao cristianismo e esforço para erradicar
a fé cristã.
Porém a oração de Estevão foi ouvida e prontamente
atendida, pouco tempo depois, Paulo com cartas dos líderes religiosos judeus
para apresentar nas sinagogas e prender os cristãos, sai a “caça” desses, o
termo usado por Lucas é que Paulo “respirava ameaças de mortes contra os
discípulos do Senhor”. Porém na estrada a Damasco, no meio de sua missão, Paulo
é surpreendido com uma revelação do próprio Jesus. “Saulo, Saulo, por que me
persegues?” Ou seja, a perseguição de Paulo contra os cristãos era contra o
próprio Senhor Jesus (Atos 9). A cegueira de Paulo que durou 3 dias é uma
metáfora para a sua cegueira espiritual, e mostra o drama de sua conversão.
O
que eu quero dizer com toda essa digressão?
Que ao escrever aos
crentes de Filipos, Paulo tinha em mente a imagem de Estevão, e é muito
provável que os cristãos dessa igreja conhecessem bem a história do primeiro
mártir e da conversão de Paulo. Ou seja, para Paulo, para os Filipos, a
proposta para a vida cristã não era algo impossível de se alcançar ou distante
da nossa realidade. Pois, o mesmo sentimento que havia em Cristo habitou também
em Estevão, agora habitava em Paulo e deveria habitar em cada cristão.
Como podemos imitar Cristo nos dias de hoje, no nosso
país e cidade, um lugar que não nos oferece risco de vida e agressão física?
O missionário brasileiro Ronaldo Lidório, ao traduzir o
Novo Testamento do original grego para a língua Limonkpeln (um dos dialetos do
povo Konkomba, em Gana, África), percebeu que há dois termos largamente usados
no Novo Testamento, que muitas vezes estão juntos e que retratam o caráter
cristão: proclamação e testemunho. O termo grego para ‘proclamação’ é
‘Kerygma’: a forma estratégica e inteligível de comunicar a mensagem do
evangelho. É a Igreja se preparando, estudando e analisando as possibilidades
de comunicar o evangelho a um grupo, seja uma pessoa, família ou povo. Isto é
Kerygma.
Já ‘Martíria’ é o termo grego para ‘testemunho’ e sempre
está ligado ao Kerygma. Entretanto ‘Martiria’ não é uma proclamação inteligível
e estratégica como encontro de casais, acampamentos evangelisticos, evangelismo
explosivo ou células familiares. Martiria é testemunho de vida, a personalidade
transformada pelo Senhor. É domínio próprio em casa, ser justo com os
empregados, ser brando no falar. É ser a imagem de Jesus.
“A Igreja foi chamada para ser primeiramente Martírica –
viver com fidelidade tudo aquilo que crê - e só então assumir uma postura
Kerygmática.” Ronaldo Lidório
Agora é conosco
Leitor,
voltemos a olhar o texto base. Parece que agora, olhando para ele com o
background dos crentes de Filipos e de Paulo, podemos perceber que “ter o mesmo
sentimento de Cristo” não significa um mero sentimentalismo, uma experiência
espiritual (religiosa) desconectada da vida. Pelo contrário, o apóstolo está
falando sobre a mudança da disposição mental que o cristão deve ter frente à
obra de Jesus, e como isso deve afetar a sua vida. Nós vimos isso em Estevão, em
Paulo, e cabe a nós entender como a nossa vida deve se moldar a Jesus, aos seus
ensinos e valores, em contraste com o mundo.
Algumas aplicações
- Não somos
chamados para imitar Jesus no sacrifício vicário, nem com penitências. Já
está consumado!
- Nossa convocação
é para nos tornarmos semelhantes a Jesus, absorver seus ensinos e valores,
andar por onde Jesus andou. Um chamado à santidade!
- É possível que
na caminhada cristã os nossos interesses e sonhos se choquem com a nossa
vocação, e quando isso ocorrer, seremos então chamados para nos esvaziar
de nós mesmos, abrir mão em prol de uma vocação mais excelente. “Humilhou-se
a si mesmo, tornando obediente até... (no caso de Jesus – morte)”.
- Por fim, somos
chamados para olhar não somente para o Jesus que se esvaziou e se humilhou,
mas para o Jesus que ressuscitou e foi glorificado, honrado com o nome
sobre todo nome. Esse Jesus que venceu é a garantia que nos também
participaremos da sua vitória. Somos chamados por Jesus para ter bom
ânimo!