quarta-feira, 13 de junho de 2012

A luta de todo cristão



A partir da queda do homem, descrita no livro de Gênesis, toda a humanidade, em qualquer período da história teve que lidar com o problema do pecado e suas terríveis conseqüências. É verdade que nem todo mundo tem a mesma compreensão da palavra pecado que o judaísmo e o cristianismo têm, e também é verdade que muitos rejeitam inclusive essa terminologia “pecado”. Mas é inevitável que todos tenham que lhe dar com esse mal, não apenas externo, mas essa luta interna, que procura dominar e possuir por completo a todos, sem exceção. Alguns em nossa época procuram combater o pecado negando-o veementemente, e vemos isso a partir de uma terrível trilogia niilista: hedonismo – permissividade - relatividade.

O livro de Gênesis é o fundamento da revelação de Deus. Os primeiros 11 capítulos nos fala sobre a natureza de Deus, o papel do cosmos criado e o papel da humanidade como seu reflexo na gerência de tudo. Acima de tudo, porém, nos mostra como um mundo classificado por Deus como bom veio a degradar-se cada vez mais por causa do pecado. O capítulo 3 mostra especificamente como o pecado entrou no mundo e suas conseqüências diretas na criação. Já o capítulo 4, nosso texto de reflexão conta a história do primeiro homicídio.

Caim era irmão mais velho de Abel. O primeiro era lavrador por ofício enquanto o segundo pastor de ovelhas. Ambos decidiram ofertar ao Senhor o produto do seu trabalho, entretanto, o Senhor ficou contente apenas com Abel e sua oferta, ao passo que Caim foi rejeitado. O único detalhe que o texto nos traz é que a oferta de Abel envolvia a primazia, a primeira cria do rebanho, uma referência àquilo que ele tinha de melhor (Gênesis 4:1-16). Porém o Novo Testamento nos traz duas contribuições para entender melhor o porquê da aceitação e rejeição da oferta de um e do outro. Vejamos:

I Jo3:12 – João nos diz que as obras de Abel eram justas e de seu irmão Caim más, ou seja, Abel fazia o que era bom e reto aos olhos de Deus ao passo que seu irmão andava por outro caminho.

Hb11:4 – o autor confirma que Abel tinha o testemunho de justo, e procedia corretamente.

Os 3 textos nos mostram que a qualidade da oferta a Deus está diretamente ligada a pessoa que a oferece. A disposição do coração conta muito, uma distinção enorme com as divindades e deuses das religiões politeístas, uma vez que Deus se revela como um Ser relacional e moral.

A reação de Caim confirma essa primeira constatação. O texto nos diz que ele muito se irou ao ponto do seu próprio semblante revelar o que acontecia dentro de si. A conversa de Deus com Caim procura devolver-lhe a razão. Por que você está assim carrancudo? Se você agir corretamente não é certo que será aceito? Não havia acepção de pessoa, mas a sua rejeição estava diretamente ligada à forma que ele vivia, aos seus pecados e rebeldia. O convite de Deus a Caim é que ele se arrependa e converta-se da maneira que procedia. 

Deus foi mais enfático e disse: Se, todavia, procederes mal, eis que o pecado jaz à porta; o seu desejo será contra ti, mas a ti cumpre dominá-lo. (v.7) A advertência para Caim e todos os demais descendentes de Adão é sobre como lidar com o pecado, nós devemos dominá-lo e não permitir que aconteça o contrário. Ou seja, as nossas vontades, ou os nossos instintos, não devem ser o nosso senhor, mas devem estar sujeitas a nós. Ao invés de sermos compulsivos ou permissivos, devemos ter domínio-próprio e viver com sobriedade. O autor de Hebreus de forma semelhante nos lembra de que o pecado nos importuna de forma persistente e que nós devemos nos livrar dele (Hb 12:1).

A advertência nos traz duas metáforas que pode nos ajudar a compreender a luta que está envolvida:

1ª A primeira imagem é de uma casa. O texto diz que o pecado está à porta, na entrada procurando uma forma de invadir o interior da casa e fazer morada. É interessante que Jesus faz uma referência a mesma metáfora, porém agora ele está do lado de fora batendo na porta para entrar na casa e ter comunhão com o residente, não mais numa relação de domínio e escravidão como no caso do pecado (Apocalipse 3:20).

2ª A segunda imagem é do pecado como um animal selvagem que está à espreita e que precisa ser dominado. A versão da Bíblia de Jerusalém diz o seguinte: “o pecado é como um animal acuado que te espreita”. Aqui existem mais referências, como no caso da serpente que tentou Eva e a imagem que o apóstolo Pedro nos traz do diabo como um leão rugindo e andando ao nosso redor procurando oportunidade para atacar (IPe 5:8). Porém a imagem do pecado é como algo que precisa ser devorado, enquanto as outras duas imagens nos mostram a necessidade de resistir ao diabo, mas todas são unânimes na necessidade de vigilância!

Ou seja, Caim tem de escolher entre dominar sua inveja ou ser dominado e consumido por ela. Porém a decepção de Caim não era consigo mesmo. Ele invejava seu irmão mais do que estava disposto a concertar sua vida. Ele transfere a sua culpa para o próximo, indiferente da inocência ou não do outro. Ao invés de elevar o padrão Caim procurou rebaixá-lo, anulando aquele por quem Deus tinha autoestima. Como se o padrão não fosse o próprio Deus!

“Ao negar a advertência, Caim defronta-se com o pecado e o desenvolvimento do mal que o leva a violência. Atrás do fratricídio está o ódio, atrás do ódio a inveja, e atrás da inveja o orgulho ferido.” Paul Hoff

A obstinação de Caim não parou por aí. Ao ser argüido pro Deus sobre o paradeiro de seu irmão ele responde com toda indiferença: Por acaso sou eu responsável por meu irmão? Ao ser dominado pelo pecado Caim passa a tornar-se indiferente também ao seu próximo. A negação de Caim por esta responsabilidade revela que Deus estava fazendo uma inferência a uma diretriz anterior de cuidado do próximo, em outras palavras, uma convocação a compaixão.

A Escritura deixa bem clara essa relação de interdependência de toda a criação. Ao homem fora dado à responsabilidade de dominar e desenvolver toda a criação, ao passo que a existência do homem estava condicionada ao cuidado e a preservação da mesma, a boa gerencia da criação. No mesmo passo, o homem foi criado para ser relacional, e a sua primeira experiência foi o casamento, passando pela família e o desenvolvimento da sociedade, até a formação de povos e nações distintas. Todo o desenvolvimento se deu através das relações interpessoais, através de direitos e deveres, num ambiente de proteção e cuidado mútuo.

O homicídio praticado por Caim o levou a duas situações extremas: o conformismo com o pecado, ou seja, completamente dominado e subserviente a ele, e a indiferença para o próximo, e no caso específico seu parente. A história nos mostra como aquilo que fazemos está diretamente relacionado ao nosso próximo. Ainda que não seja um caso extremo de homicídio, o nosso pecado afeta diretamente o nosso semelhante. A Bíblia está cheia de metáforas para mostrar essa relação, como por exemplo, quando compara a igreja há um corpo e este corpo é composto por muitos membros, enquanto a sua saúde está diretamente relacionada à pureza e a qualidade dos relacionamentos. Ou seja, a qualidade da minha vida afetará diretamente aquele que está ao meu redor.

Mas como o mundo que vivemos lida com isso? 
O exemplo de Friedrich Nietzsche no livro - O anticristo
Capítulo II
O que é bom? – Tudo que aumenta, no homem, a sensação de poder, a vontade de poder, o próprio poder.
O que é mau? – Tudo que se origina da fraqueza.
O que é felicidade? – A sensação de que o poder aumenta – de que uma
resistência foi superada.
Não o contentamento, mas mais poder; não a paz a qualquer custo, mas a guerra; não a virtude, mas a eficiência.
Os fracos e os malogrados devem perecer: primeiro princípio de nossa caridade.
E realmente deve-se ajudá-los nisso.
O que é mais nocivo que qualquer vício? – A compaixão posta em prática em nome dos malogrados e dos fracos – o cristianismo...
Capítulo VI
Chama-se cristianismo a religião da compaixão. – A compaixão está em oposição a todas as paixões tônicas que aumentam a intensidade do sentimento vital: tem ação depressora. O homem perde poder quando se compadece...
Nietzsche tornou-se indiferente ao próximo. O importante pra ele é dar vazão a evolução que está em curso, toda ela guiada pelo acaso, e levará os melhores àquilo que ele denomina poder. Isso pra ele é o homem livre, o homem que se entrega ao seu instinto e nega a caridade.

Pergunto. Alguma semelhança com Caim? Para muitos, Nietzsche é o pai do pós-modernismo. E acredito que isso seja verdade mesmo, pois na sua época suas idéias eram facilmente rejeitadas.

Como iremos resistir ao espírito de Caim na nossa sociedade? Não há outra forma se não seguirmos o conselho do autor de Hebreus: precisamos de muita coragem!
 
Portanto, também nós, visto que temos a rodear-nos tão grande nuvem de testemunhas, desembaraçando-nos de todo peso e do pecado que tenazmente nos assedia, corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta, olhando firmemente para o Autor e Consumador da fé, Jesus, o qual, em troca da alegria que lhe estava proposta, suportou a cruz, não fazendo caso da ignomínia, e está assentado à destra do trono de Deus.
Considerai, pois, atentamente, aquele que suportou tamanha oposição dos pecadores contra si mesmo, para que não vos fatigueis, desmaiando em vossa alma.
Ora, na vossa luta contra o pecado, ainda não tendes resistido até ao sangue... Hebreus12:1-4

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