O evangelho narrado por João deixa bem claro que
Deus amou o mundo ao ponto de elaborar um plano para a redenção do homem que
estava condenado a morte por conta do pecado. Por isso o apóstolo utiliza-se
muito da expressão ‘vida eterna’ ao referir-se ao benefício proporcionado ao
homem por meio da obra de Jesus Cristo (o termo aparece 17 vezes no evangelho e
6 vezes na sua primeira carta - 1ª João, os outros 3 evangelhos juntos utilizam
8 vezes esta expressão). A situação do homem era tão grave que ao descrevê-la,
João utiliza palavras tão pesadas que nos assustam, veja: ‘amaram as trevas’,
‘andam nas trevas’, 'uma vida de profunda escuridão' (total ignorância quanto
ao Criador, o único Deus verdadeiro), ‘escravo do pecado’ (totalmente dominado
pela iniquidade e sem opção de escape ou libertação).
O plano de redenção divino envolvia o próprio
Filho, que se encarnaria e viveria uma vida que resplandeceria a glória do
próprio Deus, uma vida sem pecado, e que se entregaria voluntariamente, como
uma oferta perfeita para a expiação de pecado de uma vez por todas, ao qual
damos o nome de ‘sacrifício vicário’, ou substitutivo, ou seja, Jesus assumindo
a culpa pelo pecado do homem para que esse tenha paz com Deus e desfrute da
vida e não viva mais aterrorizado com a morte, para que viva e ande na luz e
não mais nas trevas, para que encontre liberdade e não mais escravidão. Tudo
isso foi planejado, arquitetado nos mínimos detalhes, e o próprio Senhor Jesus
nos conta que todas as Escrituras falavam ao seu respeito, sobre a sua obra
voluntária. Não houve acaso, sorte, circunstâncias que lhe favoreceram ou
desfavoreceram, Jesus veio na plenitude dos tempos nos trazer vida eterna por
meio da sua vida, morte e ressurreição.
Agora vamos imaginar a situação dos discípulos.
Eles reconheceram que Jesus era o Messias, ou o Cristo. Entretanto eles não
entenderam em nenhum momento a necessidade da morte de Jesus. Pedro, o mais
atrevido dos discípulos, chegou a censurá-lo (Senhor, tem compaixão de ti
mesmo!). Jesus, consciente do abatimento que acarretaria aos seus discípulos,
ele se propõe a expor detalhadamente o momento da sua morte que se aproximava,
mostrando a importância deste evento e que ele não seria derrotado pela morte,
mas que ressurgiria. Jesus anuncia também a vinda do Consolador, do Espírito
Santo, aquele que os faria lembrar de todo o ensino de Jesus e lhes concederia
poder para proclamarem as boas novas de salvação a todos os homens a fim de que
se arrependam e também compartilhem da ‘vida eterna’. É isso que Jesus se
dedicou a ensinar, conforme narra os capítulos 14 a 16 do evangelho escrito por
João, que encerra com a oração de Jesus no capítulo seguinte. Jesus queria que
seus discípulos soubessem com antecedência o que estava por acontecer, e que
com isso se alegrassem. Não com a morte iminente de Jesus propriamente dita,
mas com os benefícios de seu sacrifício, com o plano amoroso e misericordioso
de Deus, com a promessa do Espírito Santo que seria enviado sobre a Igreja, com
a esperança da ressurreição, tanto a de Jesus no terceiro dia após sua morte,
como a de todos os que creram em seu nome a ser concretizada no grande ‘Dia do
Senhor’. Uma alegria completa, esse é o desejo de Jesus aos seus discípulos,
que eles ‘fiquem cheios de sua alegria’.
A oração sacerdotal de Jesus
O texto deixa claro que Jesus orou diante dos seus
discípulos, logo após um longo discurso sobre o que ocorreria em breve, antes
dos momentos de aflição do Getsêmani. O foco da oração é que ‘a hora é
chegada’! A conclusão da obra salvadora de Jesus se aproxima e o momento é um
misto de alegria e apreensão, alegria por que o dia da salvação se aproximava e
tristeza por que o sofrimento que ele estava por enfrentar era inevitável. Na oração de Jesus não existe espaço para o
acaso, mas apenas para certezas e segurança.
A oração de Jesus é composta por 3 momentos
sucessivos: o primeiro é referente ao seu ministério que está próximo de ser
concluído, invocando sua missão na terra e recordado o seu sucesso, pois o
Filho havia revelado o Pai aos seus discípulos; no segundo momento a oração
passa a ter em foco os seus discípulos, todos aqueles que haviam crido e que
agora haveriam de o honrar (representar) através de suas vidas (obras e
virtudes), ainda que haveriam de enfrentar muita oposição do mundo; e no último
momento Jesus ora por aqueles que haveriam de crer, seja num futuro próximo (a
Igreja de Atos) ou num futuro mais distante (a Igreja de hoje), uma Igreja que
deveria estar comprometida com a verdade do evangelho, vivendo em santidade e
testemunhando Jesus ao mundo por meio da unidade de seus membros.
A oração de Jesus nos permite observar dois
aspectos importantes, o primeiro é o aspecto sacerdotal de Jesus, o mediador
entre Deus e o homem, já o segundo é a manifestação da vontade de Jesus para os
seus seguidores, a unidade da sua Igreja.
Jesus é o único mediador entre
Deus e o homem. O livro
de Hebreus apresenta Jesus como o Mediador de uma Aliança superior e definitiva
entre Deus e o homem, e por 18 vezes afirma que Jesus é o nosso sumo sacerdote.
Ao contrário dos demais sacerdotes, Jesus é sacerdote para sempre, sua oferta
pelo pecado foi perfeita e aceitável não havendo mais necessidade de outros
sacrifícios complementares, ele é o sacerdote das nossas confissões e se
compadece de nós.
A oração sacerdotal nos mostra Jesus exercendo esse
ofício e fazendo a mediação entre nós e Deus. Aquilo que fora impossível por
conta dos nossos pecados, agora se torna uma realidade próxima de cada um de
nós, a aproximação do ‘trono da graça de Deus’, a entrada no ‘Santo dos
Santos’, ou seja, a aproximação de Deus por meio da obra de Jesus. Jesus trouxe
paz, reconciliação, e agora podemos desfrutar de uma nova realidade de vida.
De certa forma, essa reconciliação com Deus por
meio de Jesus Cristo fez com que nós perdêssemos nossa identidade com o mundo
em rebelião e que rejeita o governo de Deus. Neste sentido nós ‘não somos do
mundo’, assim como o próprio Senhor Jesus, passamos a ser cidadão dos céus, do
Reino de Deus, comprometidos com seus valores e sua justiça.
Essa verdade nos leva para outro aspecto da oração
de Jesus, a sua vontade revelada a nós.
A vontade de Jesus revelada é a unidade do seu povo, dos seus discípulos, da
sua Igreja. A comunhão a qual se refere o Senhor Jesus tem como modelo de
referência a própria Trindade, a comunhão do Pai com o Filho é um modelo para a
comunhão dos cristãos. E essa vontade de Jesus se desdobra tanto no aspecto da
nossa identidade como no aspecto da nossa missão. Se por um lado devemos estar
unidos com nossos irmãos por meio de Cristo, o nosso vínculo da paz, por outro
lado, devemos estar unidos com os nossos irmãos por que essa é a forma que
Jesus escolheu para tornar o seu evangelho conhecido.
Explico melhor. Agora como filhos de Deus, unidos
com Ele por meio de Cristo, devemos olhar, amar e caminhar com o nosso próximo
que professa a fé no mesmo Senhor. Isso faz parte de nossa identidade uma vez
que agora fazemos parte desta grande família, o povo de Deus, e ao mesmo tempo
o desenvolvimento da nossa salvação (nossa santificação, ou libertação do
pecado) está estreitamente ligado à vida em comunidade, na qual confirmamos
nossa confissão e nos socorremos mutuamente. Caminhando junto, esse processo
revelará coerência entre o nosso discurso como cristão e a nossa prática
diária, e uma forma muito graciosa, fará
o mundo perceber com mais clareza o evangelho (uma espécie de encarnação) e ver
sinais do reino de Deus se manifestando.
E aqui temos dois exemplos do nosso cotidiano para
desbravar. De um lado temos a experiência diária do acolhimento, ou
hospitalidade. E do outro a experiência também diária do perdão dos pecados. Ao
mesmo tempo em que fomos acolhidos por Deus como filhos e inseridos na sua
família, devemos promover o mesmo com o nosso próximo. A empatia, a etnia, o
gênero, a posição social, ou qualquer outro elemento de acepção de pessoas não
deve ser estimulado ou tolerado por nós. E essa deve ser uma realidade tanto
comunitária quanto pessoal, da mesma forma que eu fui acolhido por Deus eu devo
acolher o outro cristão. Eu preciso abrir as portas da minha casa!
Já em relação ao perdão de pecados, não existe
justificativa plausível para retermos o perdão, uma vez que todos nós fomos
perdoados e aceitos pelo Pai na sua comunhão. Nós que antes éramos inimigos,
fomos feitos amigos íntimos de Jesus. Jesus é claro sobre o assunto, na oração
do Pai Nosso, assim como na parábola do servo impiedoso, na exortação a Pedro,
e em tantas outras referências, notamos que a dificuldade não deve ser uma
desculpa para o conformismo, ou a indiferença para com esse mandamento, mas
devemos nos lembrar que o nosso novo padrão de relacionamento é a Trindade!
Eu não gostaria de ser leviano e dizer que perdoar
o meu próximo é uma tarefa simplista. Não, pelo contrário. Mas sem dúvida
nenhuma ela é libertadora! Porém na própria oração sacerdotal Jesus nos mostra
que o nosso maior desafio para a unidade é a impureza nas nossas vidas, esse é
o nosso maior empecilho. Por isso Jesus ora para que seus discípulos sejam
santificados, e isso se dá por meio da palavra de Deus, conhecendo a vontade de
Deus e se dedicando a sua prática.